A China - mais uma vez ela - está no meio de uma epidemia causada por uma cepa emergente de coronavírus. Muito mais do que um problema local, o virus já se espalhou pelo mundo e todos os continentes já estão apresentando casos desta nova infecção viral.
A Organização Mundial de Saúde nomeou formalmente a doença COVID-19, e o Grupo de Estudo Coronavírus nomeou o vírus subjacente como síndrome respiratória aguda coronavírus 2, ou SARS-CoV-2.
Um grupo incomum de pacientes com pneumonia foi detectado pela primeira vez no final de dezembro e o novo coronavírus foi oficialmente identificado como o motivo destes casos em 8 de janeiro. Até o momento, causou mais de 90.000 casos confirmados e mais de 3,000 mortes confirmadas, principalmente na província de Hubei, na China. Ele se espalhou para mais de 30 países ou territórios até agora, incluindo os Estados Unidos, que têm poucos casos diagnosticados até o momento mas que vai com certeza apresentar mais nas próximas semanas. Naturalmente, a doença deixou muitas perguntas no ar, e vamos tentar esclarecer o que está acontecendo por aqui.
O mundo já presenciou algo assim antes?
Sim. De fato, o SARS-CoV-2 é o terceiro novo coronavírus patogênico a surgir nas últimas duas décadas. O primeiro, descoberto em 2003 e denominado SARS-CoV, causou a SARS, uma pneumonia grave e atípica. O segundo, o MERS-CoV, surgiu uma década depois no Oriente Médio e causou uma doença respiratória semelhante e foi chamada de síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS). Desde a sua identificação, foram documentados 2.494 casos de infecção por MERS-CoV e quase 900 mortes. A epidemia de SARS-CoV mostrou-se maior, mas menos mortal, com aproximadamente 8.000 casos e quase 800 mortes. o Vocid-19 vai bater o recorde do número de casos com certeza.
De onde vêm esses vírus?
O MERS-CoV e o SARS-CoV parecem se originar em animais, e provavelmente o mesmo ocorre com o SARS-CoV-2. Isso classifica uma zoonose, doença que pode saltar entre humanos e outros animais. MERS-CoV e SARS-CoV eram originalmente vírus de morcego que se espalharam para um animal intermediário (camelos e civetas, respectivamente), que depois expôs os seres humanos aos vírus.
A análise genética das seqüências SARS-CoV-2 mostra que seus parentes genéticos mais próximos parecem ser os coronavírus de morcego, com o papel de espécies intermediárias possivelmente desempenhadas pelo pangolim, uma espécie em extinção traficada na China por conta de suas escamas e carne para serem vendidas ilegalmente.
Os coronavirus são comumente encontrados em outras infecções virais, e existem quatro tipos que causam resfriados em humanos, conhecidos como HCoV-229E, HCoV-NL63, HCoV-OC43 e HCoV-HKU1 - e esses também parecem ter origens zoonóticas.
Como esses vírus conseguem esses saltos entre as espécies e contaminar humanos?
Embora as especificidades sejam diferentes, o mecanismo se baseia na mesma premissa fundamental: acesso e capacidade de reprodução. Se você fosse o virus, você estaria se perguntando: eu posso chegar às células de um hospedeiro? E as proteínas que eu tenho, para me multiplicar, podem reconhecer e se ligar a estruturas (conhecidas como receptores) nessas células? Nesse caso, se a resposta é positivo para as duas questões, temos o ambiente ideal: o vírus agora pode entrar na célula e começar a se replicar, infectando o hospedeiro.
Os coronavírus se tornaram bastante hábeis em descobrir como usar esses receptores para obter acesso às células de seus hospedeiros. Os vírus usam uma glicoproteína de superfície - uma proteína com açúcares ligados a ela - chamada proteína spike (S) para se ligar às células hospedeiras. Essa proteína confere ao vírus uma aparência de coroa, que é a origem da “corona” em seu nome. A parte da proteína que faz a ligação real, chamada subunidade S1, pode variar consideravelmente, permitindo que o vírus se ligue a muitas espécies hospedeiras de mamíferos diferentes.
A maioria dos coronavírus que infectam humanos parece se prender a um dos três receptores específicos do hospedeiro nas células dos mamíferos. SARS-CoV e NL63 usam um receptor humano chamado enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), MERS usa dipeptidil peptidase 4 (DDP-4) e 229E usa aminopeptidase N (APN). Todas essas proteínas estão presentes nas células epiteliais ou superficiais das vias aéreas humanas, e é por isso que essas mucosas representam alvos fáceis para qualquer vírus transmitido pelo ar. Dois estudos recentes de SARS-CoV-2 sugerem que, como o SARS-CoV, o coronavirus usa o ACE2 como receptor.
Quaisquer outras zoonoses com as quais devemos nos preocupar?
Embora não seja necessariamente um motivo de preocupação, existe outro vírus que geralmente emerge de reservatórios de animais: o virus da gripe (influenza). Quase todos os vírus influenza conhecidos são originários de aves aquáticas, como patos, gansos, andorinhas-do-mar, gaivotas e espécies relacionadas.
Muitos vírus passam de pássaros para outras espécies (incluindo seres humanos). Freqüentemente, a nova espécie é um beco sem saída; o vírus da influenza aviária pode pular de pássaros para humanos, por exemplo, mas não entre humanos.
Mas, ocasionalmente, um novo vírus também pode se espalhar eficientemente entre as pessoas. Vimos isso mais recentemente em 2009 com o H1N1, um vírus suíno que se espalhou entre os seres humanos, causando uma pandemia.
Lembrando da história de outra grande epidemia, foi também o vírus H1N1 aviário o responsável pela pandemia global de 1918, a chamada gripe espanhola, que afetou mais de 500 milhões de pessoas pelo mundo, matando mais de 50 milhões (num mundo que tinha ainda somente 2 bilhões de pessoas). Se lembrarmos que hoje somamos mais de 7 bilhões de habitantes no planeta terra, isso equivaleria a morte, hoje, de 175 milhões de individuos. Aquilo sim foi assustador, sem contar que na época os tratamentos ainda eram precários.
Como o virus da gripe (influenza) entra na célula e se reproduz?
Para obter acesso às células de um hospedeiro, o virus da gripe usa sua própria glicoproteína viral, hemaglutinina (H). Assim como a proteína de pico do coronavírus, o H é uma proteína de superfície com aparência espetada que se destaca do vírus. Liga-se às células do trato respiratório superior que possuem resíduos de ácido siálico - cadeias de açúcar ligadas às extremidades de proteínas e lipídios.
Esses ácidos siálicos podem ter diferentes formas, com diferentes tipos de ligações (formas pelas quais os átomos do ácido siálico se ligam ao açúcar). As influenzas aviárias preferem uma ligação conhecida como ligação α2,3, na qual o ácido siálico se liga à galactose de açúcar através de um átomo de carbono específico. Esse tipo de ligação faz com que o ácido siálico e a galactose permaneçam retos.
Os vírus influenza adaptados ao homem parecem preferir uma ligação α2,6, que usa um átomo de carbono diferente e tem uma aparência mais inclinada. Pensa-se que essa preferência pelo ácido siálico seja o principal fator na determinação de quais espécies um vírus pode infectar e limita a capacidade dos vírus da influenza puramente aviária infectarem e se espalharem nas populações humanas.
Que outros fatores influenciam as doenças em animais que podem ser transmitidas para os seres humanos?
Trabalhos recentes mostraram que a interação vírus-hospedeiro também pode ser modificada por proteases do hospedeiro - enzimas que quebram proteínas -, portanto, não é apenas a composição da proteína spike que determina quais hosts são vulneráveis ​​a quais vírus. Essas proteases podem cortar partes da proteína spike e alterar a forma como ela se liga às células hospedeiras; portanto, os vírus que normalmente podem não infectar as células humanas podem fazê-lo após um tratamento com protease.
O papel das espécies intermediárias também pode ser mais complexo do que os cientistas pensavam a princípio. Os pesquisadores inicialmente suspeitaram que essas espécies eram necessárias para que os coronavírus passassem das espécies primárias do reservatório para os seres humanos. Talvez o vírus tenha evoluído e se adaptado às espécies intermediárias, tornando-o mais eficiente na ligação às células humanas.
Estudos recentes mostraram que alguns coronavírus de morcego podem infectar células humanas sem passar por um hospedeiro intermediário - o que significa que um reservatório significativo de coronavírus não descoberto pode estar escondido por aí.
Da mesma forma, acreditávamos que os porcos poderiam servir como um "vaso de mistura", onde as cepas de influenza aviária se adaptariam melhor aos mamíferos, uma vez que os porcos parecem ter ácidos siálicos ligados a α2,3 e α2,6 nas células de sua traqueia, permitindo que cepas humanas e de aves misturem e produzam novos vírus adaptados ao homem. Mas, embora os porcos possam desempenhar essa função, agora sabemos que essa mistura não é necessária e que os vírus aviários podem infectar humanos sem um intermediário.
Portanto, ambas as espécies de vírus apresentam um desafio contínuo devido à sua diversidade e propensão para hospedeiros diversos (humanos e aves, por exemplo). De fato, essa diversidade provavelmente permite esses saltos em primeiro lugar. Uma população grande e diversificada pode ter mais chances de conter vírus que podem se ligar a uma variedade de receptores, quando comparada a uma população mais homogênea. Por esse motivo, os coronavírus e a gripe têm potencial pandêmico.
O que podemos fazer para nos proteger?
Antes de tudo, mantenha-se seguro lavando as mãosregularmente
e evite tocar o rosto e os olhos - práticas que ajudam a evitar a infecção por um ou outro vírus. Você pode pegar um vírus respirando diretamente gotículas carregadas de vírus no ar ou tocando superfícies contaminadas e infectando o nariz e os olhos, cujas membranas mucosas servem como locais de entrada.
Os pesquisadores desenvolvem vacinas contra a gripe todos os anos, além de uma vacina universal que protege contra todas as cepas do vírus. Com o coronavírus, não estamos tão longe assim. Atualmente, vários laboratórios estão desenvolvendo uma vacina contra SARS-CoV-2, mas leva tempo para realizar testes clínicos em animais e humanos.
Para esta epidemia as vacinas ainda não protegerão a população, e o que mais importa agora são as políticas de saúde público de isolamento e detecção dos casos. O tratamento é relativamente simples, e desde que feito de forma adequada pode evitar complicações graves.
Crédito: para elaboração de texto retirei dados de autoria de Tara C. Smith, epidemiologista americana. Ela é professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Estadual de Kent e estuda infecções principalmente em zoonoses. Smith é bacharel em biologia pela Universidade de Yale e obteve seu doutorado em microbiologia na Universidade de Toledo, onde investigou o Streptococcus pyogenes. Ela concluiu uma bolsa de pós-doutorado de dois anos em epidemiologia de doenças infecciosas na Universidade de Michigan e é uma entusiasta da comunicacão científica