Crise econômica se aprofunda nos dados, mas bolsa teima em subir

Os dados econômicos batendo recordes negativos não param de chegar. E tem gente que ainda acha que estamos passando por algo momentâneo, que vai passar assim que a economia reabrir. Até parece que alguns acreditam numa varinha mágica, que ao ser balançada na direção correta vai fazer com que de uma hora para outra todo o pânico se disperse, e as pessoas voltem a andar normalmente pelas ruas, indo a restaurantes, bares, jogos de futebol. Para mim não vai ser bem assim a coisa, e os dados que chegam diariamente sobre a economia somente reforçam o que eu acho que teremos pela frente.

Ontem a noite (dia 15 de abril) chegou até os noticiários a informação de que o socorro inicial do governo americano já estava se esgotando. E olha que não foi pouca a ajuda: o PPP destinou quase 350 bilhões de empréstimos aos pequenos empresários, e foi aprovado há menos de 1 mês. O pacotão do governo americano no total foi de mais de 2 trilhões de dólares, como vocês podem observar no gráfico abaixo, publicado no site da NPR (www.npr.org)

Este programa federal de apoio a pequenas empresas durante a crise do coronavírus praticamente ficou sem fundos na noite desta quarta-feira, em parte graças a um impasse no Senado para reabastecer seus cofres, mas principalmente porque muita gente pediu o dinheiro.

O Programa de Proteção de Pagamento (PPP) deverá parar após a aprovação de empréstimos para mais de 1,4 milhão de pequenas empresas. O presidente do Comitê de Pequenas Empresas Marco Rubio (Republicano da Flórida) escreveu quarta-feira no seu Twitter que o programa poderia deixar 700.000 aplicações de pequenas empresas no "limbo". 

Mas o que tem chamado a atenção de muita gente por aqui é que o programa de ajuda do Governo e do Fed não era para funcionar bem assim: o Federal Reserve não precisaria voltar e resgatar a economia da maneira como fazia durante a crise financeira, porque as empresas americanas aprenderiam sua lição sobre não se preparar para riscos inesperados e não precisaria de um banco central para salvá-lo. Não era essa a idéia, lá pra trás, em 2008?

Então: estamos aqui novamente em 2020, na mesma situação, criando pacotes gigantescos de ajuda monetária a grandes empresas e bancos, mesmo que o intuito tenha sido ajudar o pequeno empresário, aquele que carrega o piano na economia americana há muito tempo.

Vamos lembrar de 2008 um pouco. Empresas com dívidas gigantestas corriam o risco de fracassar, bancos corriam o risco de quebrar (entre eles o Citibank) e o Fed novamente foi chamado a expandir seu balanço e a tomar medidas extraordinárias para salvar a galera. Era para ser uma ajuda temporária, lembram? E os seus comandantes falavam com uma invejável certeza que ia passar logo, mas cá estamos novamente em 2020 com mais do mesmo.

Só que hoje a coisa já começa pior: e muito pior, diga-se de passagem. Como já abordamos em outros posts aqui do Doc News, em menos de 2 meses o FED já imprimiu mais dinheiro do que nos 18 meses da crise de 2008-2009. Ainda bem que a impressão de dinheiro agora é digital, senão faltaria papel para botar nas máquinas. Ou até mesmo veríamos protestos de protetores das florestas - imaginem uma Greta da vida calculando quantas árvores seriam cortadas para produzir o papel moeda necessário para impressão de milhões de cédulas.

O mercado de ações, então, parece nem sentir o que está acontecendo nas últimas 3-4 semanas. Apesar da queda de quarta-feira, Wall Street tem aplaudido os esforços do Fed, o que já era mais do que esperado. O S&P 500 no fechamento de terça-feira (dia 14) havia subido 26.5% em relação ao seu fechamento mais baixo de 23 de março, dia em que o Fed disse que compraria Treasuries e títulos lastreados em hipotecas (os famosos MBS) em quantidades ilimitadas, em oposição a um limite previamente definido de US$ 700 bilhões. Chama a atenção no gráfico abaixo a Nasdaq, que nos últimos 12 meses apresenta um retorno de +15% (crise? que crise?)

A implementação de uma forma aparentemente infinita de flexibilização quantitativa (QE) deu início a uma manifestação interessante em Wall Street, um debate mais amplo sobre o apoio que o Fed prometeu agora para ajudar os mercados financeiros e a economia subjacente. Embora o banco central tenha se comprometido a concentrar os esforços em Main Street (nome genérico que damos os pequenos e médios negócios aqui nos EUA) os críticos dizem que está implementando programas voltados para Wall Street e que se arrependerão amargamente no futuro por isso.

Os dados econômicos são extremamente desanimadores, e não teria porque termos essa recuperação das bolsas em tão curto espaço de tempo. Separei alguns abaixo pra você entender como é grave a atual situação da economia americana.

1. Jobless Claims (índice de entradas no seguro desemprego, índice publicado semanalmente) desta quinta-feira mostrou que mais 5,245 milhões de pessoas entraram com o pedido. O acumulado das últimas 4 semanas chega a incríveis 22 milhões de pessoas que solicitaram a ajuda, o que corresponde a cerca de 15% da força de trabalho

2. O setor de varejo estimou ontem que terá perdas de até 1.3 Trilhões de dólares nos próximos 3 meses por conta do Covid19, e ainda teve seu pior resultado histórico registrado ontem, quando mostrou que as vendas no setor (retail sales) cairam 8.7% desde fevereiro (reforçando, essa queda nunca havia sido registrada na história deste índice econômico).

O setor de varejo é o maior empregador privado da economia nos EUA, contabilizando 52 milhões de empregos. Somente uma empresa, a Best Buy, conhecida dos brasileiros que viajam frequentemente aos EUA e querem comprar produtos eletrônicos, anunciou no dia de ontem que vai dar licensa não remunerada a cerca de 51 mil empregados do seu sistema de horas flexíveis de trabalho - se lembrarmos que ela tem 145mil funcionários, esse número de licensas é significativo.

Ainda nas previsões da NRF (National Retail Federation) de ontem estima-se que 6.1 milhões de empregos sejam perdidos nos próximos 3 meses apenas, e cerca de 12 milhões nos próximos 12 meses. Ainda no setor de varelo, a JC Penney, que já vinha enfrentando dificuldades, disse ontem que adiaria o pagamento de juros nos empréstimos mensais (sinalizando que o próximo passo pode ser pedir proteção no Chapter 11, o caminho daqui para o pedido de falência)

3. Balanços dos grande bancos. Na quarta-feira, o Bank of America, o Goldman Sachs e o Citigroup disseram que seus lucros no primeiro trimestre caíram pelo menos 40% em comparação com o mesmo período do ano passado. Na terça-feira, o JPMorgan Chase e o Wells Fargo anunciaram quedas trimestrais de 69% e 89%, respectivamente. Além do mais, todos eles já reservaram mais dinheiro para quem não for pagar as dívidas assumidas com eles (veja na tabela abaixo). O JP Morgan, maior banco americano, vai destinar agora 7 bilhões para possíveis dívidas que não forem pagas.

Os bancos, que registraram lucros recordes nos últimos anos, dizem que os relatórios sombrios são em grande parte impulsionados pelos bilhões de dólares que estão reservando para cobrir possíveis perdas com a profunda recessão do coronavírus. O Bank of America, o segundo maior banco do país, disse que faturou US$ 4 bilhões no trimestre, em comparação com US$ 7 bilhões no mesmo período do ano passado. Está deixando de lado US$ 3,6 bilhões adicionais para cobrir as perdas com empréstimos.

4. Os preços do petróleo americano caíram para uma baixa de 18 anos na quarta-feira, com uma queda na demanda que reduziu os preços do petróleo em mais de 60% em 2020. West Texas Intermediate (WTI), a referência dos EUA, estava negociando pouco acima de US$ 19 por barril, preço tão baixo que quase nenhum produtor de petróleo poderá lucrar ao vender o que antes era conhecido como o ouro negro. Os preços do petróleo de US$ 60 a US $ 80 por barril são considerados um ponto ideal que permite aos produtores ganhar dinheiro, e para muitas empresas tem sido hoje um sonho distante.

Além disso, uma notícia chamou a atenção ontem: o governo americano está considerando pagar aos produtores de petróleo dos EUA para deixem o petróleo no chão para ajudar a aliviar um excesso que fez os preços despencarem e empurrou alguns perfuradores à falência. O Departamento de Energia elaborou um plano para compensar as empresas por acumularem até 365 milhões de barris em reservas de petróleo, tornando efetivamente essa parte bruta inexplorada do estoque de emergência do governo dos EUA, disseram autoridades do governo, que pediram para não serem identificados descrevendo deliberações antes de uma decisão e anúncio. (clique aqui para ler a notícia completa), Quando que você poderia imaginar uma coisa dessas acontencendo nos EUA, não é mesmo.

Mas quero voltar ao Fed, para lembrarmos de como a coisa ainda pode ficar mais complicada

Fed tem um problema mais importante para considerar

Ao adotar suas ações historicamente sem precedentes, o Fed está se aventurando em um terreno de crise financeira conhecido pelo seu risco moral. Isso significa que, embora o Fed possa ser bem-intencionado, sua multiplicidade de movimentos, desde o corte de taxas de curto prazo até perto de zero, até sua lista de programas de empréstimos e liquidez, como já citamos em outro post, pode continuar encorajando o mau comportamento dos grandes players, sem necessariamente fazer com que a ajuda chegue a quem realmente precisa chegar: o pequeno empresário. Só para vocês terem uma idéia do quanto isso é importante, vale lembrar que os EUA tem aproximadamente 30 milhões de pequenas empresas, e é isso que movimenta a grande roda da economia americana. Até ontem, o chamado 'Economic Injury Disaster Loan Program' já tinha recebido 4 milhões de aplicações, num total de 383 bilhões de dólares. Vai precisar de mais dinheiro, pois os pedidos não vão parar com certeza. E era esse o objetivo inicial do Fed: fazer o dinheiro chegar logo a Main Street.

Entretanto, os movimentos agressivos do Fed, particularmente na área de empréstimos e compra de títulos corporativos (incluindo os Junk Bonds), como interferem diretamente no mercado de capitais, tiram o Congresso do círculo de responsabilidades perante a população geral, e dão aos legisladores uma saída fácil para a política, delegando-a nas mãos de banqueiros centrais não eleitos.

O resultado pode ser um Congresso usando o balanço do Fed como um saco sem fundo para sugar da economia o que puder, mas sem sofrer as consequências políticas por isso. Vimos há pouco, nesse último pacote que foi aprovado, cerca de 70 milhões de dólares serem destinados ao Kennedy Center, um centro cultural de espetáculos e arte. Logo em seguida, ao receber a promessa da ajuda financeira, saiu a notícia de que todos os músicas de lá estavam no olho da rua. A mesma noticia lembrava que uma integrante do board do Kennedy Center era ninguem menos do que a filha de Nancy Pelosi, speaker of the house, a grande lider da aprovação do pacotão naquela câmara legislativa.

O Fed, acreditem vocês ou não, pode ser o bode espiatório e ao mesmo tempo o único culpado, politicamente, pelas gastanças da turma de burocratas de Washington. Quem diria que Jerome Powell e seus acadêmicos e modelos econômicos se venderiam tão fácil assim, para Wall Street e para a política da capital federal dos EUA.

E as lições não foram aprendidas não, como o Fed esperava (será que esperava?) Enquanto o Fed vai continuando sua interferência no sistema, a cada dia que passa as empresas estão se preparando menos para os tempos de crise. Afinal, porque se preparar para alguma coisa, fazendo previsões de caixa, se no primeiro sinal de um problema maior a máquina de imprimir moeda digital está lá para imprimir 'o que for preciso' como já frisou o presidente do Fed?

Howard Marks, o fundador da Oaktree Capital cujos memorandos são amplamente divulgados e curtidos em Wall Street, definiu risco moral como sendo aquele que acontece quando pessoas e instituições estão protegidas da dor, mas más lições são aprendidas.

"O resgate bancário de 2008 tem sido citado como um caso do governo colocando Wall Street à frente de Main Street e contribuiu significativamente para o populismo que paira a política americana desde então", disse Marks em um novo memorando divulgado na última terça-feira. "O passo recente para resgatar credores alavancados pode adicionar mais combustível a esse incêndio".

Fico por aqui deixando as palavras do Marks para você refletir um pouco. De minha parte, continuo observando tudo atentamente, e procurando documentar o que vejo por aqui. Sempre tenho um olhar otimista, mas desta vez confesso que as minhas lentes estão um pouco embassadas. 

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