Fed, EUA e o Novo Capitalismo

covid19 crise economia eua fed usa Mar 28, 2020

De tempos em tempos o mundo dá uma estremecida, e o que estamos vendo nos dias de hoje demonstra claramente como o universo é um mar de ondas caóticas, entremeadas por períodos de calmaria.

Situações como a atual epidemia do Covid-19 sempre atormentam os governantes, pelo simples fato de que eles acham que tudo pode ser controlado com uma canetada para aprovar uma nova regulamentação, por exemplo. 

O problema de todas essas situações aleatórias é que elas não mandam recado antes de chegar, e pegam desprevinidos os governantes, e é por isso que as informações que temos sobre isso hoje em dia é muito confusa. Na verdade essas pessoas, independente de partido político ou credo, sabem tanto quanto eu ou você numa hora como essa: praticamente nada sobre o que pode vir pela frente. Só que eles não podem dizer isso na televisão, né. Então convidam especialistas, cientistas, que servem para validar suas vontades políticas e seus medos.  

Um ponto que muito tem me chamado a atenção é, como não poderia deixar de ser, a reação de gestores com relação a situação da economia após a poeira do Covid19 baixar. Para mim estamos iniciando um processo de mudança na ordem econômica mundial, e dificilmente sairemos ilesos desse processo. E toda essa minha desconfiança passa pela simples observação do que está acontecendo nas últimas semanas nos grandes controladores do universo: Bancos Centrais e Governo.

O pacote de ajuda do governo americano especificamente, aprovado nesta última semana, foi para mim a gota dágua de um processo de intervenção estatal que foi iniciada em 2008, em pequena escala. E vou explicar aqui porque na minha opinião isso é preocupante. Não vou entrar em detalhe na ajuda, a intenção aqui é mais falar sobre o que foi proposto e porque isso pode significar um novo paradigam para o pais da "terra dos livres e casa dos bravos" (land of the free and home of the brave, frase final de uma parte do Hino dos EUA

EUA e Capitalismo: como tudo isso vai ficar?

O debate econômico de hoje não é mais exclusividade das equipes que cuidam das políticas fiscais e monetárias. Como estamos vivendo numa pandemia sem precedentes nos tempos econômicos modernos (desconsidero aqui a gripe suina de 1917-1918, por motivos óbvios) devemos obrigatoriamente relacionar a saúde com a economia - o que na verdade sempre está relacionado, mas em maior grau nos dias atuais, onde temos um inimigo invisível que pode causar uma recessão em tempo recorde.

Mesmo antes do virus chegar e decisões políticas paralisarem a economia mundial, os centralizadores de decisão da política monetária já vinham sofrendo. Todos sabemos que os bancos centrais já vinham sendo criticados há um bom tempo, mesmo antes do virus aparecer. Quem acompanha os mercados já avisava que as políticas de incentivo monetário, e o dinheiro fácil com juros baratos rodando a solta, poderia representar um grande risco ao sistema no futuro. E o futuro chegou. Junto com o Covid-19, infelizmente.

Injeções sem seringa
Nas últimas semanas, o Fed reduziu as taxas de juros em 150 pontos-base para quase zero e percorreu todo o manual de crises de 2008. Porém isso não foi suficiente para acalmar os mercados. O Fed então anunciou US$ 1 trilhão por dia, adicionais, em acordos de recompra e flexibilização quantitativa ilimitada, o que inclui uma compra de títulos de US$ 625 bilhões por semana (números inimagináveis há muito pouco tempo atrás). Nesse ritmo, em um ano o Fed será dono de dois terços do mercado de Treasuries.
Mas é festival de siglas dos novos programas que merecem consideração especial, pois podem ter profundas conseqüências a longo prazo para o funcionamento do Fed e para a alocação de capital nos mercados financeiros. Vejam o que vem por ai:
1. CPFF (Commercial Paper Funding Facility) - compra de papéis comerciais do emissor, que são um tipo de título de curto prazo para injeção de liquidez.

2. PMCCF (Primary Market Corporate Credit Facility) - para compra de títulos corporativos do emissor.

3. TALF (Primary Market Corporate Credit Facility - Mecanismo de Empréstimo a Longo Prazo com Titulos Garantidos por Ativos) - backstop de financiamento para títulos garantidos por ativos

4. SMCCF (Secondary Market Corporate Credit Facility - Casa de Crédito Corporativo do Mercado Secundário) - compra de títulos corporativos e ETFs de títulos no mercado secundário.

5. MSBLP (Main Street Business Lending Program) - Os detalhes estão por vir, mas serão destinados a pequenas e médias empresas qualificadas, complementando os esforços da Small Business Association (SBA), entidade do governo americano que cuida dos empréstimos desse setor da economia.

Qual o problema em tudo isso? O Fed não está autorizado a fazer nada disso. O banco central só pode comprar ou emprestar valores mobiliários com garantia do governo. Isso inclui títulos do Tesouro, títulos lastreados em hipotecas de agências e dívida emitida pela Fannie Mae e Freddie Mac.

Então, como eles podem viabilizar isso já que não são autorizados a fazer tal papel? O Fed financiará um veículo para fins específicos (SPV-special purpose vehicle) para cada acrônimo que mostramos acima, para conduzir essas operações.

O Tesouro, utilizando o Fundo de Estabilização de Câmbio (Exchange Stabilization Fund), fará um investimento de capital em cada SPV e estará em uma posição de “primeira perda”. O que isto significa? Em essência, o Tesouro, não o Fed, está comprando todos esses títulos e impedindo empréstimos; o Fed está atuando como banqueiro e fornecendo financiamento. O Fed contratou a BlackRock Inc. para comprar esses títulos e administrar a administração dos SPVs em nome do proprietário, o Tesouro.

Em outras palavras, o governo federal está nacionalizando grandes fatias dos mercados financeiros. E o Fed está fornecendo dinheiro para isso. A BlackRock fará os negócios. Esse esquema funde essencialmente o Fed e o Tesouro em uma organização só. Tem gente até dizendo que o presidente do NOVO FED se chama  Donald J. Trump.

Em 2008 algo semelhante foi feito mas em menor escala. As administrações de Bush e Obama cederam o controle total desses programas ao então presidente do Fed, Ben Bernanke. Hoje, 12 anos depois disso, temos uma compreensão muito melhor de como eles funcionam e do grande risco que embutem, coisa que em 2008 ainda estava meio confusa para nós. Além disso temos um presidente que deixou muito claro o quão descontente ele está com o Fed nesses últimos tempos: porque os membros do Fed não usaram seu poder considerável para forçar a Dow Jones Industrial Average pelo menos 10.000 pontos a mais? Era essa a principal reclamação de Donald Trump quando o assunto era Fed.

O problema começou quando o Fed ficou alarmado com a atual disfunção nos mercados de renda fixa. Eles então sentiram que precisavam agir. Este foi o pensamento correto, claro, mas vinha com muitos efeitos colaterais junto. Para obter a autoridade para estabilizar esses mercados “privados”, os banqueiros centrais precisavam que o Tesouro concordasse em nacionalizá-los (tomar pra si, em outras palavras) para que pudessem fornecer os fundos para fazê-lo.

Na prática o Fed está dando ao Tesouro acesso à sua impressora de dinheiro. Isso significa que, num movimento extremo, o governo estaria livre para usar seu controle, e não o controle do Fed, desses SPVs para instruir o Fed a imprimir mais dinheiro para comprar títulos e conceder empréstimos, em um esforço para acelerar os mercados financeiros. Por que parar aí? Caso Trump vença a reeleição, por exemplo, ele poderia tentar usar esses SPVs para obter os desejados 10.000 pontos a mais do Dow Jones, que ele acha que o Fed negou a todos. Esse é o medo de muitos democratas nos EUA, mas começa a ser um medo também de quem vê na impressão de moeda um problema sempre muito grande quando o assunto é macro-economia.

Se esses programas forem exageradamente abusados, como vamos fazer a avaliação justa de preços de um determinado ativo? Se muitas empresas vão ser salvas, num mecanismo de impressão de moeda, como poderemos saber o que vem pela frente em termos de necessidades de outras empresas, que porventura não tenham recebido ajuda hoje, e que possam ter problemas no futuro? Porque não imprimir mais 2 trilhões de dólares, se for necessário, daqui a 3 ou 4 meses? A incerteza vai continuar, e pode continuar por muiito tempo. 

O remédio está aos poucos sendo mais importante do que o sistema de defesa do organismo como um todo. Nós, investidores, não vamos entender mais nenhum tipo de sinal de mercado, sinais esses que faziam com que pudessemos livremente avaliar uma alocação eficiente de capital. Num médio e longo prazo, esses desajustes poderiam forçar os participantes do setor privado a cair fora, já que a mão pesada do governo iria operar em mercados "controlados" que estariam muito longe do ideal de liberdade econômica que o capitalismo tanto preza. Isso já ocorreu no mercado de fundos federais dos EUA e no mercado de títulos do governo no Japão, em 1990, e o país do sol nascente nunca mais se livrou desse problema.

Tempos interessantes virão. Resta saber somente se conseguiremos entender os sinais da doença. Não do Covid-19 (esses todo mundo já está cansado de saber, aliás), mas do novo sistema capitalista que pode estar surgindo.

 
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