FED: lobo em pele de cordeiro?

O mundo ficou bem contente com a notícia de algumas semanas atrás, quando o FED se comprometeu a ajudar os paises em dificuldades no mundo, por conta do fechamento da economia para conter a epidemia do Covid19. Mas a história tem outros pontos interessantes que vou abordar por aqui.

Como sempre desconfio do santo quando o milagre é bom demais, fui caçar na internet alguns dados para entender um pouco melhor o que foi essa bondade repentina do Fed com as nações amigas. Acabei achando postagens interessantes de uma analista chamada Lyn Alden (https://www.lynalden.com/), que lembrou de pontos importantes dessa briga mundial por dólares. Reproduzo aqui algumas colocações bem pertinentes que ela fez sobre o problema atual.

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O debate do dolar entre bears e bulls geralmente se concentra nos US$ 12 trilhões ou mais em dívida denominada em dólar que existe fora dos Estados Unidos.

No entanto ...o outro lado disso é frequentemente ignorado pelos que estão achando que o dólar vai continuar subindo. Os estrangeiros possuem US$ 39 trilhões em ativos nos EUA. (Os EUA possuem apenas US $ 28 trilhões em ativos estrangeiros.)

Os EUA costumavam ser a maior nação credora do mundo. Agora é a maior nação devedora do mundo. A posição líquida de investimento internacional continua a se deteriorar como porcentagem do PIB, como pode ser visto nesse gráfico:

Assim, quando os estrangeiros estão vendidos em dólar, eles podem negociar seus ativos nos EUA para obter dólares. Os estrangeiros normalmente liquidam suas participações em Treasuries que mantêm no Fed (custodiante) em resposta a picos de dólar (dados do gráfico são do final do mês de março 2020):

Essa venda forçada aplica-se a títulos do governo, títulos corporativos, imóveis e ações.

As pessoas costumam se perguntar como os dólares podem sair dos EUA, além do comércio tradicional de produtos. A venda de ativos nos EUA é a resposta a essa pergunta.

Em outras palavras, os bulls do dólar parecem subestimar quanto de dano um dólar forte causa aos preços dos ativos nos EUA nesse ambiente. Não é surpresa que, em 2008, o mercado de ações tenha sofrido como sofreu:

Todas essas linhas de troca de dólares que o Fed está fazendo com os países não são uma bondade repentina no coração dos seus dirigentes. É para evitar a perspectiva de estrangeiros venderem US$ 39 trilhões em ativos dos EUA, incluindo especialmente US$ 7 trilhões em Treasuries (títulos do tesouro americano).

Alguns países estão em melhor situação do que outros, porque suas reservas cambiais (armazenadas em dólares e outras moedas conversíveis como euros ou ouro) excedem seus passivos expressos em dólares. Outros não são tão sortudos.

Aqui estão as principais reservas cambiais dos EMs (mercados emergentes) e dívidas em dólares como porcentagem do PIB:

Recentente, em 29 de março de 2020, o banco central da Coréia do Sul anunciou que irá recorrer a seu novo swap de moeda com o Federal Reserve dos EUA para fornecer US$ 12 bilhões em financiamento em dólares americanos aos bancos locais através de leilões em 31 de março.

A Coréia está usando este swap de US$ 12 bilhões para ajudar seus bancos, é claro. No entanto, eles também têm US$ 121 bilhões em Treasures dos EUA. A linha de swap existe nos EUA para evitar que a Coréia tenha que vender os títulos que possui do Tesouro dos EUA – simples assim.

Fed está ajudando os paises a não venderem seus títulos

Ao analisar quem está no controle e como isso provavelmente se desenrola, considere que os EUA estão ajudando seus credores a não fazer vendas desiguais de seus ativos. Os EUA são o devedor líquido e não o credor líquido nesse cenário."

Num comunicado realizado no dia 31 de março de 2020 você pode perceber que é exatamente essa a intenção do maior banco central do mundo, ao criar a FIMA Repo Facility:

"Esse mecanismo deve ajudar a apoiar o bom funcionamento do mercado de Treasuries dos EUA, fornecendo uma fonte temporária alternativa de dólares dos EUA, além das vendas de valores mobiliários no mercado aberto".

Caso você queira ver esse comunicado no site do FED, clique aqui.

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O Fed está com a corda toda

Para quem ainda não conseguiu assimilar tudo que o Fed vem fazendo para tentar acalmar os mercados, vejam só a lista do que foi feito somente nas últimas 6 semanas:

  • 3 de março - Corte emergencial de 0,5 ponto percentual na taxa de juros.
  • 15 de março - Outro corte de 1 ponto percentual na taxa, levando a referência do Fed para empréstimos de curto prazo para quase zero.
  • 15 de março - Ao mesmo tempo que o segundo corte na taxa, o Fed reduziu em 1.5 pontos percentuais a taxa de empréstimos dos bancos na janela de desconto e reduziu para zero o índice de reservas compulsórias
  • 17 de março - Na primeira de várias medidas destinadas a manter o crédito fluindo através do sistema financeiro, o Fed disse que começaria a comprar Comercial Papers (dívida não garantida de curto prazo em que as empresas dependem para obter dinheiro operacional, principalmente os bancos).
  • 18 de março -  Anúncio de outra Facility de crédito para manter o funcionamento do mercado financeiro.
  • 19 de março - Uma nova operação focada em swaps cambiais destinados a outras instituições que precisam de ativos denominados em dólares.
  • 20 de março - Operação liderada pelo Fed de Boston para comprar dívida de bonds municipais.
  • 23 de março - Expansão das compras de ativos anunciadas originalmente pelo Fed, que deveriam chegar a US$ 700 bilhões, mas agora são ilimitadas, dependendo da necessidade de apoiar os mercados e a economia. As compras já expandiram as participações do Fed em seu balanço em mais de US$ 2 trilhões (no total agora são quase 6 trilhões de dólares)
  • 23 de março - Além da próxima etapa de flexibilização quantitativa, o Fed também anunciou um programa de crédito de US$ 300 bilhões para empresas e consumidores. As iniciativas incluem duas linhas de crédito para grandes empregadores, um mecanismo de empréstimo a prazo expandido para empresas e consumidores por meio da Small Business Administration e um mecanismo de mercado monetário expandido que inclui dívida municipal e certificados de depósitos.
  • 6 de abril - Anúncio de que o Fed fornecerá apoio ao Programa de Proteção de Pagamento do Tesouro (Treasury’s Payment Protection Program), com o objetivo de incentivar as empresas a não demitir funcionários durante o desligamento induzido por coronavírus.
  • 8 de abril - Modificação da restrição de ativos aos quais o Wells Fargo pode ter acesso, restrição essa por conta dos escândalos do passado - tudo isso para permitir que o terceiro maior banco dos EUA participe dos programas de empréstimos comerciais.
  • 9 de abril - E o toque final (até agora, né), o que muitos estão chamando do Coup de Gras (ou tiro de misericórdia, como conhecemos em portugues) - um programa de empréstimos de US $ 2,3 trilhões que concederá crédito aos bancos que emitem empréstimos para PPP, compra de até US $ 600 bilhões em empréstimos emitidos pelo programa Main Street para empresas de médio porte. As medidas também envolvem linhas de crédito corporativas secundárias que permitirão ao Fed comprar títulos corporativos de "anjos caídos" (fallen angels, nome coloquial dado as empresas que caíram em rebaixamentos de nota) e um programa de US$ 500 bilhões para comprar títulos de governos estaduais e municipais.

Meu pitaco e um pouco mais

Muita coisa ainda vai acontecer nessa história toda, e o mundo vai continuar num balanço tênue entre uma recuperação econômica ou então ver o barco afundar de vez numa crise pior do que todas as outras que foram vividas até agora, na época da moeda fiduciária.

E a ajuda que o Fed vem dando, imprimindo moeda adoidado, não está chegando muito fácil na mão de quem precisa de verdade: a população. Isso pode ser observado pelo gráfico da Velocidade do M2.

Para quem ainda não entende o que é isso, sugiro que dê uma lida no meu post explicando como funciona a denominação dos estoques monetários aqui nos EUA, clicando aqui.

Dinheiro liberado transita lentamente: para o povo, é claro

O gráfico abaixo mostra a velocidade do M2 (de 1958 até outubro de 2019). 

Como você pode ver, sempre em épocas de recessão (áreas em cinza do gráfico) a velocidade caiu. Outro dado importante de ser reforçado: a velocidade do M2 vem caindo consistentemente desde 1998, quando aconteceu a crise russa na sua moeda e o consequente default daquele pais, no verão daquele ano. Mas o que significa isso na prática?

A velocidade da moeda é a frequência com que uma unidade de moeda é usada para comprar bens e serviços produzidos internamente em um determinado período de tempo. Em outras palavras, é o número de vezes que um dólar é gasto para comprar bens e serviços por unidade de tempo. Se a velocidade do dinheiro está aumentando, mais transações estão ocorrendo entre indivíduos em uma economia. Se está diminuindo, quer dizer o contrário: as trocas financeiras estão sendo cada vez menores.

A frequência da troca de moeda pode ser usada para determinar a velocidade de um determinado componente do suprimento de dinheiro, fornecendo algumas informações sobre se consumidores e empresas estão economizando ou gastando seu dinheiro.

Existem vários componentes da oferta monetária: M1, M2 e MZM (o M3 não é mais rastreado pelo Federal Reserve); esses componentes estão dispostos em um espectro do mais estreito ao mais amplo.

Considere M1, o componente mais estreito. M1 é o suprimento monetário de moeda em circulação (notas e moedas, cheques de viagem [emissores não bancários], depósitos à vista e depósitos verificáveis). Uma velocidade decrescente de M1 pode indicar menos transações de consumo de curto prazo. Podemos pensar em transações de curto prazo como consumo que poderíamos fazer diariamente.

O componente M2 mais amplo inclui M1, além de depósitos em poupança, certificados de depósito (menos de US $ 100.000) e depósitos no mercado monetário para pessoas físicas (o que no Brasil é conhecido como conta remunerada). A comparação das velocidades de M1 e M2 fornece algumas dicas sobre a rapidez com que a economia está gastando e com que rapidez está economizando.
MZM (dinheiro com vencimento zero) é o componente mais amplo e consiste no fornecimento de ativos financeiros resgatáveis ​​a par da demanda: notas e moedas em circulação, cheques de viagem (emissores não bancários), depósitos à vista, outros depósitos verificáveis, depósitos de poupança, e todos os fundos do mercado monetário. A velocidade do MZM ajuda a determinar com que frequência os ativos financeiros estão trocando de mãos na economia.

Quando notamos que a velocidade de M2, por exemplo, está diminuindo, isso significa que os trilhões liberados nos pacotes do Fed estão chegando rápido aos bancos, e bem lentamente a população e aos pequenos empresários, que estão precisando urgentemente desse dinheiro para sobreviver nessa crise econômica inédita.

Mais uma vez estamos vendo os grandes players (bancos principalmente) serem salvos, enquanto o resto fica para trás, pelo menos num curto prazo. Será que veremos algo diferente no futuro, com mais estímulos financeiros indo diretamente para quem precisa, sem burocracia? Vamos aguardar, mas acho difícil.

Estamos vendo mais do mesmo: grandes empresas que estão hoje quase quebrando usaram dinheiro emprestado a juros ridiculamente baixos para recomprar suas ações, inflando artificialmente o preço das mesmas. Sem contar os bonus e salários milionários de seus diretores e CEOs, inflados também por conta de dinheiro barato que estava rodando e continua por ai, agora na casa dos trilhões.

O remédio vai matar o paciente um dia, só estamos na dúvida de quando.

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