Porque as ações do FED não ajudam mais a economia?

Para elaborar esse artigo eu fui buscar dados publicados nos últimos anos sobre a bolsa e os movimentos que o Fed tem feito pra tentar controlar a volatilidade de tudo isso que temos visto nas últimas semanas. Infelizmente, o que vi nesses artigos e vou reproduzir aqui não é nada animador.

Quando um mercado bear se inicia niguém fica sabendo no dia

Alguém por ai já viu um mercado bear e uma recessão começarem quando todo mundo acha que vai começar? Olhar o passado é fácil, e depois de 10 anos falar que quando inverteu a curva de juros o pais está prestes a entrar em recessão é fácil. Mas prever dia e hora é que são elas. Por isso não acredito nas grandes previsões do mercado, pois ainda não me provaram que alguém consegue ver o futuro numa bola de cristal.

Um dos sinais, porém, que nos alerta com relação a uma recessão e um mercado bear que está por vir é a queda depois de um topo histórico. Isso acontece muito, e as vezes o mercado bull continua (como aconteceu no verão de 2016, e mais recentemente em fevereiro e dezembro de 2018. Mas essa última queda agora, de 12.8% depois de mais um topo histórico, já entrou para o livro de recordes: foi a queda mais rápida (apenas 1 semana) desde o topo nunca antes atingido até uma correção de 12.5% no mínimo. E isso pode ser um sinal de alerta importante.

O Fed, obviamente, fez o seu papel para contentar os mercados: baixou as taxas de juros em 50 bps numa reunião de urgência, extraordinária, copisa que fazia tempo que não era feita. As taxas, que já estavam baixas, estão agora entre 1 e 1.25%.

Porque o mercado vem se preocupando com isso?

Uma preocupação que existe é a fraqueza na participação geral no mercado. Apesar dos mercados terem atingido máximos históricos, o número de ações negociadas acima de seus respectivos 50, 150 e 200 dma permaneciam em tendência de baixa já nos meses finais de 2019. Essas divergências negativas precederam correções de curto a médio prazo no passado, e não deve ser diferente agora. Depois da enorme queda da semana passada a grande maioria dos papéis negociados no Russell 2000 de small caps encontra-se em terrritório de correção. Isso não costuma ser um bom sinal para os bulls.

Como o jogo tem sido jogado até então?

Com o posicionamento mais acomodado do Fed (chamado de dovish por aqui, por comparar com a passividade de uma pomba, que no inglês se chama dove), muita gente manteve um viés positivo de longo prazo nas carteiras de investimento. Reduziram seus hedges, diminuiram posicionamentos defensivos, e alguns mais abusados entraram mais pesado comprando. Outros, mais ressabiados, compraram put no índice pra proteção,  e esse nível de relação entre calls e puts acabou chegando a niveis muito altos no mês de janeiro de 2020. A era de ninguém se proteger parece que vem mudando com o maior acesso a informação.

Uma coisa que ficou evidente é a sensação de que tudo que é bom também um dia acaba. Muita gente acabou vendendo ações que estavam com lucros astronômicos para começar a investir em títulos de renda fixa, como os Bonds e Notes do tesouro (aléms dos bonds municipais). Muitos desses produtos começaram a apresentar lucros muito fora do padrão – me lembro que um fundo de bonds municipais da minha conta pessoal checou a render 9% em 8 meses, o que para mim é uma surpresa grande. E essa correria para os bonds acabou deixando o Fed preocupado. Mas a preocupação a partir de 15 ede setembro de 2019 era outra: ajudar os bancos a arcarem com suas responsabilidades diárias. E a partir dai a coisa começou a complicar mais

O Fed desiste de se preocupar com a inflação

Na quarta-feira, dia 30 de outubro de 2019, o Fed cortou as taxas de juros pela terceira vez no ano, o que era amplamente esperado pelo mercado. O que não era esperado era a seguinte declaração.

"I think we would need to see a really significant move up in inflation that's persistent before we even consider raising rates to address inflation concerns." 

Para faciliar, a tradução para o portugês é essa: "Acho que precisaríamos ver um aumento realmente significativo da inflação, que é persistente antes mesmo de considerarmos aumentar as taxas para tratar das preocupações com a inflação". - Jerome Powell 30/outubro/2019

A declaração não recebeu muita notoriedade da imprensa, mas essa foi a declaração mais importante do presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, até aquela data, segundo estudiosos do mercado. De fato, não podemos nos lembrar de uma época nos últimos 30 anos em que um presidente do Fed tenha articulado tão claramente um desejo tão forte por termos mais inflação.

Por que isso é imporante? Vamos dissecar as palavras em negrito na citação para mais esclarecimentos.

  1. "realmente significativo" - Powell não está apenas dizendo que permitirá um aumento na inflação, mas adicionando a palavra significativo ele devia estar torcendo para o aumento ser até bem importante.
  2. "persistente" - Diferentemente dos poucos presidentes anteriores do Fed que alegaram estar vigilantes em relação à inflação, Powell está claramente nos dizendo que não reagirá à inflação, que não está falando apenas de um salto "realmente significativo" dos níveis atuais, mas de uma taxa que dure por um período de tempo.
  3. "considerar" - se a inflação não aumentar num nivel realmente significativo comparado aos níveis atuais e permanecer nesses níveis por um tempo, eles consideram apenas aumentar as taxas para combater a inflação.

O que é pior? O que o JP falou ou o fato disso não ter repercutido pior nos mercados ou na mídia? Tirem suas conclusões. Talvez eles não estejam focando nas três seções em negrito. De fato, o que eles provavelmente pensam que ouviram foi: acho que precisaríamos ver um aumento na inflação antes de considerar o aumento das taxas para tratar das preocupações com a inflação. Tal declaração estaria mais de acordo com o tradicional "discurso do Fed".

Outra coisa importante desse discurso do Fed: ele praticamente reconheceu que foi pego na armadilha de liquidez

O que é uma armadilha de liquidez? (Liquidity trap)

Aqui vai a definição clássica: "Uma armadilha de liquidez é uma situação descrita na economia keynesiana na qual as injeções de dinheiro no sistema bancário privado por um banco central não conseguem diminuir as taxas de juros e, portanto, não estimulam o crescimento econômico. Uma armadilha de liquidez é causada quando as pessoas acumulam dinheiro porque esperam um evento adverso, como deflação, demanda agregada insuficiente ou guerra. As características de assinatura de uma armadilha de liquidez são taxas de juros de curto prazo próximas de zero e flutuações na base monetária que não se traduzem em flutuações nos níveis gerais de preços ".

O gráfico abaixo mostra o aumento no balanço do Federal Reserve, uma vez que eles são os "compradores" de títulos, o que, por sua vez, aumenta as contas de reservas excedentes dos principais bancos, em comparação com a taxa do Tesouro de 10 anos.

Obviamente, esse dinheiro não fluiu para a economia dos EUA, foi para ativos financeiros. Com os mercados absorvendo os níveis atuais de acomodação, não é surpreendente ver os mercados exigindo mais.

O gráfico abaixo compara o desvio desproporcional entre o S&P 500 e o balanço do Fed. Esse desvio foi o mais alto já registrado. Os dados finais são de dezembro de 2019.

Embora, na defesa do Fed, possa estar claro que as intervenções monetárias suprimiram as taxas de juros, pode-se argumentar que seus incentivos direcionados à liquidez não fizeram muito para apoiar o crescimento econômico durável.

As taxas de juros não caem apenas por conta das intervenções monetárias - começou quatro décadas atrás, quando a economia começou uma mudança para a sociedade de serviços alavancada pelo crédito ao consumidor. O gráfico abaixo mostra a correlação entre as taxas de juros (linha vermelha), inflação, PIB, salários e poupança (linha dourada, do composite index) e valor do S&P500 (linha preta).

Na realidade, o declínio contínuo da atividade econômica foi resultado do declínio da produtividade, do crescimento estagnado dos salários, das tendências demográficas e do aumento maciço da dívida do consumidor, das empresas e do governo. A alavancagem, por sua vez, vem aumentando muito também por conta da liquidez fornecida pelo Fed.

A enorme liquidez injetada no sistema fez com que as empresas deixassem dinheiro em caixa em demais, e sem ter muito o que fazer para investir em produtividade e geração de empresas preferiram realizar recompras de suas ações, o que vem inflando artificilamente os preços.

Vamos ao exemplo da Apple, uma das empresas que agora são trilionárias na bolsa. Em 2012 o seu programa de recompra foi autorizado e até o ano de 2029 as cifras são significantes no acumulado:

  • 2012: $10 Bi autorizados para buyback 
  • 2013: $60 Bi 
  • 2014: $90 Bi
  • 2015: $140 Bi 
  • 2016: $175 Bi 
  • 2017: $210 Bi
  • 2018: $310 Bi
  • 2019: $410 Bilhões (dados ainda não finais)

Ou seja: em 8 anos, a empresa comprou de volta o equivalente ao que valia há muito pouco tempo atrás.

A política monetária tradicional não é mais o melhor remédio

Por esses motivos, é difícil atribuir grande parte do declínio nas taxas de juros e inflação às políticas monetárias quando a tendência de longo prazo estava claramente intacta muito antes do início desses programas.

Embora se possa argumentar que as primeiras rodadas iniciais de QE (quantitative easing) contribuíram para a recuperação da atividade econômica, houve vários outros apoios mais importantes durante o último ciclo econômico.

  1. Crescimento econômico SEMPRE aumenta após uma recessão importante. Isso se deve à demanda reprimida que foi criada durante a recessão e volta à economia quando a confiança melhora.
  2. Houve vários resgates em 2009 para socorro direto do sistema bancário e da economia etc., que apoiaram bastante o impulso pós-recessivo (aliás, sem essa ajuda de mãe, poderíamos ter visto a quebra do Citibank em 2008...imaginem só).
  3. Uma onda maciça de gastos do governo, que alimentou diretamente a economia.

As intervenções do Fed a partir de 2010, quando o Fed se tornou o único player dos amigos de Wall Street, parecem ter tido pouco efeito além de uma inflação maciça nos preços dos ativos. As evidências sugerem que o Federal Reserve tem experimentado uma taxa de retorno decrescente de suas políticas monetárias. E coisa muito pior pode estar por vir: uma recessão sem a possibilidade de que abaixando os juros a coisa se acalme na psicologia do mercado.

Bem-vindo a japonização dos EUA

O Federal Reserve está preso na mesma "armadilha da liquidez" (liquidity trap) que tem sido a história do Japão nas últimas três décadas. Com uma população envelhecida, que continuará a sobrecarregar o sistema financeiro e de pensão, níveis crescentes de endividamento e política fiscal improdutiva para combater as questões que restringem o crescimento econômico, é improvável que as intervenções monetárias não façam outra coisa senão simplesmente continuar os ciclos de boom nos meios financeiros. Mas o que vimos na última mudança para baixar os juros, no meio de uma semana onde o Coronavirus era o medo maior, foi desanimador. Voltarei a isso.

O gráfico abaixo mostra o rendimento dos títulos do governo japonês em 10 anos em comparação com as taxas de crescimento econômico trimestral e o balanço do BOJ (Bank of Japan). Baixas taxas de juros e programas massivos de QE não conseguiram estimular a atividade econômica sustentável nos últimos 20 anos. Atualmente, os títulos do governo japonês de 2, 5 e 10 anos têm rendimentos reais negativos.

A razão pela qual você sabe que o Fed está preso em uma "armadilha de liquidez" é porque eles estão sendo forçados a baixar as taxas devido à fraqueza demonstraa pelo mercado financeiro. E isso é péssimo. Porque baixar as taxas de juros, e ao mesmo tempo soltar um comunicado, dizendo que as bases da economia americana estão sólidas? Se as bases são tão sólidas assim, a epidemia do Coronavirus será um mal temporário, não é mesmo? É gente, o Fed se vendeu ao mercado e agora é tarde demais para voltar atrás.

Aliás, esse é o único truque que eles conhecem para tentar empurrar a bolsa pra cima: baixar os juros. Mas a corrida para os títulos do Tesoura está frenética, e nunca antes na história tinhamos visto a taxa de 10 anos nos Notes abaixo de 1%. Provavelmente essa será a nova norma.

Infelizmente, essa ação provavelmente terá pouco ou nenhum efeito, desta vez devido ao estágio atual do ciclo econômico, que está esgotado depois de uma expansão de mais de 10 anos, sem muita melhora nos fundamentos básicos e pelo fato do déficit estar em níveis colossais.

Se as taxas de juros aumentam acentuadamente, à medida que os custos dos empréstimos aumentam  os déficits aumentam, ocorrem quedas nos indicadores de aquisição de moradias, as receitas enfraquecem e a demanda dos consumidores diminui. É a pior coisa que pode acontecer a uma economia que atualmente permanece na UTI necessitando de aparelhos potentes para continuar respirando.

Os EUA, como o Japão, estão claramente presos em uma "armadilha de liquidez" em curso, onde a manutenção de taxas de juros ultra baixas é a chave para a tentativa de sustentar um pulso econômico. A consequência não intencional de tais ações, como estamos testemunhando nos EUA atualmente, é a batalha em curso contra pressões deflacionárias. Quanto mais baixas as taxas de juros, menor o retorno econômico que pode ser gerado. Um ambiente de taxa de juros ultra baixa, ao contrário do que se pensa, tem um impacto negativo em trazer investimentos produtivos e o risco começa a superar o retorno potencial.

O mais importante é que, embora haja muitos que pedem o fim do "Great Bond Bull Market", isso é improvável. Como mostra o gráfico abaixo, as taxas de juros são relativas globalmente. As taxas não podem subir em um país, enquanto a maioria das economias pressiona taxas negativas. Como tem sido o caso nos últimos 30 anos, no Japão também e nos EUA

O simples avanço do consumo futuro por meio da política monetária continua a deixar um vazio cada vez maior no futuro que deve ser preenchido. Eventualmente, o vazio será grande demais para preencher.

Será que fazendo a mesma coisa repetidamente - o que ainda não funcionou para ninguém - e continuar a esperar por um resultado diferente vai dar certo? A história geralmente mostrou que não.

A arma do Fed está ficando sem cartuxo, meus amigos e minhas amigas. Tenham na mão uma boa gestão de risco e apertem os cintos: o problema pode estar apenas começando.

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