O ano de 2020 está sendo único em muitos aspectos e nem precisamos falar muito sobre os fatos que me levaram a essa conclusão: cada um de vocês vai ter a própria lista de excentricidades e fatos que aconteceram "pela primeira vez na história". O que chamou minha atenção neste final de ano, porém, nas minhas leituras diárias, foi um dado pra lá de excêntrico: empresas de capital aberto, na hora de escrever as suas comunicações para o mercado, precisam agora contentar os robôs de inteligência artificial (IA) das empresas que compram e vendem suas ações.
Um documento publicado pelo National Bureau for Economic Research (NBER), entitulado "How to Talk When a Machine Is Listening: Corporate Disclosure in the Age of AI" foi um dos que chamaram a minha atenção. Que título interessante ('Como falar quando a máquina está escutando'), mas ao mesmo tempo assustador, não é mesmo?
O artigo é uma análise dos arquivos 10-K e 10-Q que as empresas de capital aberto são obrigadas a registrar na Securities and Exchange Commission (SEC). O 10-K é uma versão do relatório anual de uma empresa. Ele tem de tudo, desde a fonte geográfica de receita da empresa, por exemplo, até o cronograma de vencimento dos títulos que a empresa emitiu nos últimos anos. É ali que muita gente se debruça para analisar o que a empresa pode apresentar de atrativo para que tenhamos vontade de comprar suas ações. Ou o que pode estar nas entrelinhas que vai fazer com que a gente possa pensar em vender parte ou tudo de uma posição no papel. Alguns investidores consideram o 10-K impenetrável, mas para aqueles que possuem a resistência necessária (grandes empresas podem ter 10-Ks que chegam a várias centenas de páginas), esse é o tipo de coisa que eles gostam de fazer: estudar a fundo o relatório quando ele é publicado. O 10-Q é o irmão mais novo trimestral do 10-K (que é publicado anualmente).
A observação que desencadeou a pesquisa relatada no jornal foi que os downloads "mecânicos" (ou seja, gerados por máquina) de arquivos 10-K e 10-Q corporativos aumentaram de 360.861 em 2003 para cerca de 165 milhões em 2016, quando 78% de todos os downloads parecem ter sido acionados por solicitação de um computador. Uma boa quantidade de pesquisas em IA agora avalia como os computadores são bons em extrair conclusões de uma quantidade imensa de dados, muito trabalhosos de serem analisados pelo ser humano.
O problema de tudo isso é que no passados os relatórios existiam para ser lido por analistas "humanos", que tem uma quantidade limitada de processamento de informação. Muita gente já deve ter lido algo do tipo "somente aproveitamos cerca de 10-15% da nossa capacidade cerebral de processar dados". Mas um super-computador pode processar muito mais coisa, e se os relatórios são preparados "a medida" para que eles interpretem uma ou outra coisa que interesse mais, isso começa a ficar preocupante. Se a matéria-prima que pode conduzir os traders de algorítmicos é o relato da empresa feito "aos moldes" do que o computador quer ler, o que vamos esperar dos leitores comuns - nós - que não temos como entender tudo isso? E os consultores de investimento de robôs e analistas quantitativos de todos os tipos que estão por ai, o que vão fazer de agora em diante? Perder de uma vez por todas para o nerd que melhor programar um robô para ler tudo isso e tomar uma ação rapidamente? Ou assumir que agora os seus relatórios deverão ser feitos por computador também?
Claro que as empresas passaram a ajustar o tom e as palavras usados em conference calls de earnings com analistas também, pois também suspeitam que os "nerds" das empresas que os grandes players estão contratando para usar IA no seu dia a dia estão usando softwares de análise de voz para entender onde a empresa quer chegar.
Os pesquisadores do NBER analisaram como as empresas ajustaram sua linguagem e relatórios para obter o máximo impacto com algoritmos que lêem suas divulgações corporativas. E o que eles descobriram é instrutivo para qualquer um que esteja se perguntando como seria a vida em um futuro dominado por algoritmos.
Os pesquisadores descobriram que “aumentar o número de leitores de máquinas e IA motiva as empresas a preparar relatórios que são mais amigáveis para análise e processamento por máquina”. A leitura da máquina - medida em termos da facilidade com que as informações podem ser analisadas e processadas por um algoritmo - tornou-se um fator importante na composição dos relatórios da empresa. Portanto, uma tabela em um relatório pode ter uma pontuação de legibilidade baixa porque sua formatação torna difícil para uma máquina reconhecê-la como uma tabela; mas a mesma tabela poderia receber uma alta pontuação de legibilidade se fizesse uso eficaz da marcação.
Os pesquisadores afirmam, porém, que as empresas agora estão indo além da leitura por máquina para tentar ajustar o sentimento e o tom de seus relatórios de forma a induzir “leitores” algorítmicos a tirar conclusões favoráveis sobre o conteúdo. Eles fazem isso evitando palavras listadas como negativas nos critérios dados aos algoritmos de leitura de texto. E também estão ajustando os tons de voz usados nas teleconferências trimestrais padrão com analistas, porque suspeitam que as pessoas do outro lado da chamada estão usando um software de análise de voz para identificar padrões vocais e emoções em seus comentários.
Em certo sentido, esse tipo de corrida armamentista é previsível em qualquer atividade humana em que uma vantagem de mercado possa ser adquirida por quem tiver melhor tecnologia. É um pouco como a guerra entre o Google e os chamados "otimizadores" que tentam descobrir como manipular a versão mais recente do algoritmo de classificação de página do mecanismo de pesquisa.
Claro que para o leitor desavisado isso é muito assustador. Mas devemos lembrar que isso é irreversível: IA chegou para ficar. Parece coisa de um filme de ficção, onde o nerd deixado de lado pela sociedade dos boyzinhos fica trancado em casa e depois de alguns anos volta com uma super-maquina para desbancar quem antes zombou dele.
Para nós, resta somente reconhecer que isso é uma competição que não podemos vencer sentados na frente da nossa telinha. Precisamos pensar em como seguir esses caras, e ter pelo menos uma vaga idéia de como jogar do lado da banca. Se você achar que isso tudo não existe, ou que pode vencer algo que está por ai sentado em casa, sozinho, na frente do seu computador, isso pode não ser bom para o seu bolso.