Uma análise de modelagem recente do Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME) (ref.1, 2) projetando mortes por doença de coronavírus 2019 (COVID-19) atraiu muita atenção aqui nos Estados Unidos, e praticamente todos os esforços dos governos centrais e estaduais usaram esse modelo como o mais preciso pra tomar atitudes.
O modelo utilizou as projeções de mortalidade do COVID-19 para estimar as necessidades de intervenção e prováveis mortes com relação a quantidade de leitos hospitalares. Um dado foi positivo nisso tudo, lá no início: concluir que a demanda por leitos hospitalares pode exceder a capacidade do sistema de saúde se o virus se espalhar muito rapidamente na população. A partir desta conclusão outras também são fáceis de serem tiradas: os esforços para aprimorar as políticas de mitigação e o planejamento de surtos vão ajudar a combater o problema. Mas param por ai as certezas, e o problema todo foi o que os governantes falaram a partir destas conclusões iniciais: a única forma de evitar o colapso do sistema de saúde é fazer a população toda lavar a mão e ficar em casa.
O mais grave nisso tudo: as projeções do IHME são baseadas não na dinâmica de transmissão, mas em um modelo estatístico sem base epidemiológica NENHUMA. Especificamente, o modelo usado relatou mortes em todo o mundo no COVID-19 e extrapolou padrões semelhantes nas curvas de crescimento da mortalidade para prever as mortes esperadas nos Estados Unidos. A técnica usa dados de mortalidade, geralmente mais confiáveis do que a contagem de casos confirmados dependentes de teste. Os resultados sugerem estimativas precisas (embora com limites de incerteza) para todas as regiões até o final da epidemia. Essa aparência de certeza é realmente sedutora – principalmente para governantes interessados em tirar proveito eleitoral de tudo isso - quando o mundo está desesperado para saber o que está por vir. No entanto, os dados subjacentes e o modelo estatístico devem ser interpretados com muita cautela. Aqui, levantamos preocupações sobre a validade e utilidade das projeções para os formuladores de políticas.
Um dos artigos mais interessantes que li sobre esse problema – que é grave, no meu modo de ver as coisas – já tinha no título uma chamada interessante: “Caution Warranted: Using the Institute for Health Metrics and Evaluation Model for Predicting the Course of the COVID-19 Pandemic”. A cautela com conclusões precipitadas ao usar esse modelo foi pedida pelos autores Nicholas Jewell, Joseph Lewnard e Dritta Jewell, em artigo publicado no Annals of Internal Medicine no dia 14 de abril de 2020. Ressalto a seguir as principais preocupações dos pesquisadores com o uso deste modelo, e comento nos parágrafos abaixo o que acho interessante abordar.
O modelo baseia-se na provável suposição – incorreta, é obvio - de que os efeitos das políticas de distanciamento social são os mesmos em todos os lugares do mundo, e que as políticas de supressão serão implementadas em todas as regiões e permanecerão eficazes por toda parte. Acreditar nisso é até mesmo um pouco arrogante, e desconsidera inclusive a cultura e os conceitos de cada sociedade – no Japão, por exemplo, é comum as pessoas se cumprimentarem sem usar as mãos, e nem precisamos lembrar que um italiano tem um comportamente muito mais irreverente e agitado do que o dinamarques, não é mesmo?
Essas projeções podem sofrer com a falácia da lei de Farr, um método não-mecânico semelhante no qual se supõe que as epidemias seguem uma distribuição normal alterada e dimensionada para ajustar os dados. No entanto, as curvas epidêmicas ajustam os dados precoces de várias maneiras que afetam as durações esperadas ou o número máximo de mortes observadas (ref. 3, 4). Isso é importante, pois o progresso das epidemias e os desvios das distribuições normais são esperados - por exemplo, devido às “segundas ondas” de transmissão após as intervenções de distanciamento social serem facilitadas.
Observamos poucas curvas inteiras. é claro, pois a epidemia não acabou – supõem-se que o pico está por vir, mas que pico? Como as pessoas sabem quando o pico virá? De onde tiraram essa conclusões? Como saber que “o pior já passou” se ainda não sabemos se a transmissão vai continuar?
Outro erro: depois que a idade e as sutis diferenças nos prazos das políticas são contabilizadas, presume-se que todas as curvas sigam esses padrões gerais. Isso é otimista demais né. A China - se é que podemos acreditar nisso – teoricamente adotou restrições mais rigorosas do que em outros lugares depois de observar apenas 17 mortes (5), e a Coréia do Sul se beneficiou de testes generalizados para isolar os casos precocemente. A atualização dos resultados pode diminuir a extensão em que a inferência depende de algumas configurações, mas os países que achataram as curvas de morte mais cedo podem não fornecer necessariamente uma base para extrapolar tendências em áreas onde um controle semelhante pode ser ilusório. Além disso, a recrudescência da transmissão permanece possível entre períodos de intervenção transitórios.
Embora os dados da província de Hubei representem a curva de mortalidade mais completa disponível, esses números são suspeitos (6). A Itália e outros países relatam apenas mortes hospitalares, negligenciando mortes em outros lugares (7). A falta de testes pode impedir que as mortes sejam atribuídas ao COVID-19, principalmente inicialmente. Por exemplo, em Bergamo, Itália, o número de mortes anômalas é várias vezes maior que os números oficiais do COVID-19 (8). Os atrasos nos relatórios subestimam o crescimento das curvas de mortalidade inicialmente, o que é particularmente preocupante porque o modelo usa padrões iniciais para projeções futuras. A recente adição de hospitalizações agregadas também é problemática devido a relatórios inconsistentes e fracos.
Embora a contagem insuficiente de mortes afete o tamanho final da epidemia, ela pode não afetar as formas das curvas de mortalidade. No entanto, isso pressupõe que os atrasos na contagem dos casos e nos relatórios sejam semelhantes ao longo do tempo e na região geográfica, com variações capturadas por efeitos aleatórios postulados. Tais questões de relatório se assemelham àquelas que surgem comumente nas análises de vigilância de doenças infecciosas e devem ser contabilizadas estatisticamente.
Fontes inexplicáveis de incerteza surgem de dados temporais imprecisos sobre a contagem de mortalidade e hospitalização; falta de especificação do modelo, incluindo opções de parametrização; e imprecisões nas premissas sobre o momento e o efeito das políticas de distanciamento social nas regiões. A representação gráfica da incerteza nas curvas também não é propícia à compreensão da incerteza no pico da morte diária ou nas datas de internação hospitalar. Essa incerteza seria mais evidente se apenas o “envelope” da incerteza fosse mostrado sem a curva central, que atualmente sugere maior precisão do que o modelo é capaz de oferecer.
Para Nova York, o modelo previu 10,243 mortes (5,167 a 26,444) em 27 de março e 15,546 (8,016 a 22,255) em 30 de março. Dada a opacidade do modelo e dos dados de origem subjacentes, é um desafio entender por que as projeções de outras regiões também mudam drasticamente. O alinhamento das previsões passadas com a realidade e as previsões atuais também deve ser relatado de forma transparente. Já chegaram a prever quase 2.2 milhões de mortes nos EUA, no tal do modelo usado pelo Imperial College London, se não fosse tomada nenhuma ação de mitigação do problema.
Depois isso baixou para 1 milhão se fosse feito um bom isolamento social, em alguns dias baixou para 500mil, depois 200mil, e agora já se fala em 81mil mortes até Julho.
Finalmente, as projeções estão sendo interpretadas de maneira enganosa nas mídias formais e sociais, sem ressalvas suficientes, e os resultados diferem substancialmente dos de outros modelos (9, 10). Os limites superiores da incerteza estão sendo interpretados como "pior caso" quando, na melhor das hipóteses, refletem apenas um cenário.
Por fim, o modelo do IHME pode ser confiável apenas para projeções de curto prazo. Para projeções de demanda hospitalar, os dados de resultados clínicos no nível do paciente permitirão conclusões mais precisas do que os dados de mortalidade agregados mal relatados em todo o mundo, com estimativas pontuais de como as mortes se traduzem em uso hospitalar.
É menos provável que os dados locais estejam sujeitos a erros de contagem insuficiente ou relatórios, ajudando os hospitais a se prepararem melhor para o futuro imediato. Também é improvável que um modelo "tamanho único" caiba em todas as regiões o tempo todo. Os formuladores de políticas serão melhor atendidos quando considerarem as projeções de vários modelos, aumentando assim a compreensão dos fatores que influenciam as projeções díspares e melhorando a compreensão da incerteza não contabilizada em qualquer modelo.
As principais decisões políticas precisam da contribuição do modelo, mas os modelos são valiosos apenas na medida em que os resultados são transparentes, válidos, baseados em fontes documentadas precisas, avaliados com rigor e produzem projeções robustas e confiáveis.
Ter fechado a economia com base nesses modelos poderá representar, num tempo futuro não tão longínquo, um dos maiores fiascos dos governantes de vários países, estados e municipios. A crise econômica que foi gerada, aliada ao pânico espalhado agressivamente pela mídia e pelas pessoas nos aplicativos de seus celulares e computadores, trará consequencias que poderão ser irreparáveis para a sociedade. Buscaremos o equilibrio, é claro, mas isso terá um preço grande a ser pago.
Mais uma vez a razão perdeu para a emoção. Mas não se preocupe: quando quiserem um alivio para o caos vão procurar a racionalidade no meio da baderna emocional. Sempre foi assim, e sempre será.
Referências citadas no texto