Processamento de alimentos começa a preocupar os EUA

Um dos grandes medos de qualquer pandemia é a falta de suprimentos, e não é a toa que muita gente corre aos mercados para estocar produtos. Apesar do pânico ser exagerado na maior parte das vezes, ele faz algum sentido: afinal, comer é uma das necessidades básicas mais importantes para continuarmos vivos e saudáveis. E nesta semana um dado preocupou muita gente aqui nos Estados Unidos: o problema da epidemia que vem se alastrando em algumas fábricas que processam alimentos.

O presidente dos EUA Donald Trump invocou a Lei de Produção de Defesa (DPA - Defense Production Act) para ordenar que as fábricas de frigoríficos permaneçam abertas, classificando as fábricas como infraestrutura crítica para combater a tensão que o coronavírus está colocando na cadeia de suprimentos alimentares.

A ordem executiva, divulgada na noite de terça-feira (dia 28), observava que o fechamento de apenas uma grande fábrica de processamento de carne bovina poderia resultar em 10 milhões a menos de porções individuais num único dia.

"Esses fechamentos - das fábricas - ameaçam o funcionamento contínuo da cadeia nacional de suprimentos de carne e aves, minando a infraestrutura crítica durante a emergência nacional", ressaltou ainda a ordem do governo.

Essa manobra também tem um fundamento importante: evitar a enchurrada de processos que poderiam surgir, acusando os produtores de descaso e maus tratos aos funcionários destas fábricas. Todos sabem como a industria de processos funciona nos EUS, principalmente em empresas que tem grande quantidade de empregados ligados a sindicatos, como é o caso destas que estamos citando. Com a ordem executiva, Trump aliviará a tensão no setor, pelo menos momentaneamente.

O governo dos EUA também promete dar orientações para minimizar os riscos aos trabalhadores especialmente vulneráveis ​​ao vírus, bem como incentivar os trabalhadores mais velhos e aqueles com outros problemas crônicos de saúde a ficar em casa.

Trump mencionou o pedido durante durante uma reunião na terça-feira com o governador da Flórida Ron DeSantis, onde disse que seu governo estava trabalhando com a Tyson Foods, o maior processador de carne do país.

Espera-se que esta ordem executiva resolva duas questões: ordenar que empresas críticas de suprimento de alimentos permaneçam abertas sob a Lei de Produção de Defesa e fornecer proteções de responsabilidade para os empregadores se os trabalhadores ficarem doentes, informou a NBC News, citando um alto funcionário do governo.

As ações da Casa Branca são uma resposta aos sinais de alarme emitidos pelos principais processadores de carne nas últimas semanas, que alertaram que os Estados Unidos enfrentarão uma falta de carne nas prateleiras dos supermercados, a menos que as fábricas possam reabrir e continuar processando os produtos.

A Tyson colocou um anúncio de página inteira no The New York Times, no Washington Post e no Arkansas Democrat-Gazette no domingo, abordando os fechamentos das fábricas, e não deixa de ser preocupante: "A cadeia de suprimentos de alimentos está quebrando", escreveu o presidente John Tyson.

Tyson disse que uma oferta limitada de seus produtos estará disponível em supermercados até que as instalações possam ser reabertas. Esses fechamentos temporários também significam que milhões de animais serão abatidos porque os agricultores não poderão vender seus porcos, vacas e galinhas a compradores que possam processar a carne.

No domingo, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças divulgaram diretrizes para trabalhadores e empregadores de processamento de carne e aves. As recomendações incluem a adição de mais estações para os trabalhadores entrar e sair, fornecendo máscaras e outros equipamentos de proteção para todos os funcionários, além da verificação das temperaturas antes que os trabalhadores entrem na fábrica.

Vinte e duas fábricas de frigoríficos fecharam quando centenas de trabalhadores apresentaram resultado positivo para Covid-19, informou terça-feira o Sindicato Internacional dos Trabalhadores Comerciais e Alimentos. As estimativas do sindicato incluem instalações sindicais e não sindicais.

Fábricas de processamento de carne que estavam fechadas por conta de trabalhadores infectados pelo Covid-19 (Fonte: Bloomberg News)

Pelo menos 20 trabalhadores de frigoríficos e de processamento de alimentos morreram após contratar o Covid-19, segundo estimativas do sindicato. Os trabalhadores dessas fábricas geralmente trabalham lado a lado por muitas horas, tornando quase impossível a prática de medidas de distanciamento social.

Os maiores processadores de carne do país, incluindo Smithfield, Tyson Foods e JBS, foram criticados por não protegerem suficientemente os trabalhadores.

O UFCW, que representa 80% dos trabalhadores da produção de carne bovina e suína, estima que 25% da produção suína do país e 10% de sua produção de carne bovina foram atingidos pelo fechamento de fábricas.

Numa manobra para conter a crise, o Departamento de Agricultura dos EUA está comprando US$ 3 bilhões em produtos frescos, laticínios e carne de agricultores para estabilizar os preços de varejo e reduzir o desperdício de alimentos. A agência prevê que os preços da carne bovina para 2020 subam de 1% a 2%, as aves domésticas até 1,5% e a carne suína entre 2% e 3%.

Cargill também está preocupada

Nesta sexta-feira, numa rara participação no canal de TV da CNBC, o CEO da Cargill, David MacLennan também confirmou os impactos no setor. Conhecida pela discrição no contato com a midia e pelo fato de ser a maior empresa privada em receita do mundo, a Cargill hoje é um conglomerado que processa grão, óleos vegetais, carne, frango e outros produtos. 

MacLennan foi claro ao afirmar que a crise que vivemos mudará o setor, e que inclusive as linhas de produção já começam a ser alteradas para se adaptar a nova realidade. Como as cadeias de fornecimento alimentar são diferentes na hora de atender restaurantes, supermercados e consumidores individuais, ele ressaltou que já está fazendo os ajustes necessários, e que invariavelmente cadeias de restaurantes locais podem ser as primeiras a cair. 

Um comentário foi muito interessante, e mostra como o Covid19 veio para modificar de vez as relações humanas. Em uma de suas fábricas, por conta da doença ter afetado empregados do setor de qualidade (que controlam toda a cadeia naquela fábrica), praticamente toda produção teve que ser fechada durante alguns dias. Como essas empresas são gigantes, e processam muitos alimentos, precisamos observar até que ponto isso vai chegar.

Um problema que pode afetar toda a economia

Há uma razão pela qual a carne é tão barata nos Estados Unidos em comparação com o resto do mundo. Grande parte disso é a rápida consolidação que permitiu que os frigoríficos operassem em enormes economias de escala e usassem linhas de produção com velocidades extremamente rápidas.

O número de fábricas de abate caiu cerca de 70% desde 1967, de acordo com o Departamento de Agricultura dos EUA. Uma grande parte dessa consolidação ocorreu apenas nas últimas décadas. Em um relatório de 2019, a Tyson lista uma aquisição ou consolidação para quase todos os anos de operação a partir de 2001, embora alguns desses acordos tenham sido em alimentos embalados e, às vezes, feitos fora dos EUA.

Na Europa a uma história diferente. As 15 principais empresas respondem por menos de um terço da produção de carne da União Europeia e a região viu muito menos interrupções no fornecimento.

Em tempos normais, a concentração nos EUA é apontada como uma marca registrada de uma indústria de sucesso que se tornou extremamente eficiente em distribuir enormes quantidades de carne a preços acessíveis - algo que colheu recompensas para empresas e investidores. A Tyson tem um lucro líquido anual de cerca de US$ 2 bilhões e suas ações subiram cerca de 60% nos últimos cinco anos, elevando seu valor de mercado a cerca de US$ 23 bilhões.

Mas na era dos vírus - por ironia do destino - a vastidão dessas empresas é um ponto crucial de vulnerabilidade para o suprimento de alimentos nos EUA.

Fábricas enormes são responsáveis ​​pelo processamento de milhares de animais por dia. Os funcionários são presos em linhas de produção esbarrando seus cotovelos pra lá e pra cá, e falar em distanciamento social num ambiente assim é lenda. Um pegou o Covi-19, milhares vão pegar. Os turnos giram em torno de 800 a 1,000 funcionário na Cargill, por exemplo, como frisou seu CEO nessa entrevista de hoje.

Tem ainda um outro ponto a ser considereado: empregos com baixos salários também significam que os trabalhadores enfrentam difíceis condições de vida em casa, onde várias famílias às vezes compartilham as mesmas habitações. Não é raro várias famílias morarem numa mesma casa. Não chega a ser um ambiente parecido com as favelas brasileiras, é claro, mas também é quase impossível afastar os infectados.

Novos tempos. Vamos ver até quando a farra de Wall Street consegue esconder o que de fato está acontecendo no mundo real

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