Estamos vivendo uma época única na economia e na política mundial. As bolsas estão completamente desconectadas do mundo real, protestos invadem regiões metropolitanas dos EUA, a crise do Covid19 ainda assola muitas comunidades pelo mundo, e tem muito investidor confuso sem saber o que fazer. A vida não fica fácil em tempos de crise, e dessa vez não está sendo diferente. Para mim, estamos apenas começando uma crise que pode durar anos. Senão vejamos.
Analistas financeiros do mundo todo já descartaram resultados lucrativos bons na publicação dos balanços das empresas no ano de 2020 faz tempo, e a maioria agora já fala que é para desistir também de 2021. Outros dados, porém, chamam mais ainda a atenção por conta de projeções assustadoras.
O CBO (Escritório de Orçamento do Congresso) é uma agência federal do ramo legislativo do governo dos Estados Unidos que fornece informações econômicas e de orçamento ao Congresso. Observe o gráfico abaixo sobre as previsões para a próxima década, com relação ao crescimento do PIB americano:
Recentemente o CBO reduziu sua previsão para 2020-2030 para o PIB dos EUA em US$ 7,9 trilhões. O crescimento não deve atingir o nível de previsão anterior (realizada em dezembro de 2019) até o 4o trimestre de 2029 - um fato que, se concretizado, significará uma década perdida, termo que foi cunhado para vários paises emergentes em crise, mas que agora assombra a maior economia do mundo.
O que poucos percebem é que, apesar da bolsa continuar subindo, muita gente grande no mercado está tirando o pé lentamente. A exposição dos fundos de hedge a ações permanece próxima de mínimos históricos, apesar do mercado ter subido 37% nos últimos 2 meses:
Os rendimentos dos Títulos do Tesouro de 10Y caíram junto com a queda acentuada do S&P 500 no crash de fevereiro/março, mas quando observamos os resultados do rendimento no UST 10Y observamos que não chegaram a lugar algum nos últimos 2 meses, enquanto as ações subiram sem parar, aumentando a divergência a longo prazo entre os dois produtos:
Ou seja: mesmo anunciando compras maciças de bonds, o Fed não está conseguindo segurar os juros no patamar que seria interessante numa hora como essa. E já flerta com o fantasma dos juros negativos: há 2 semanas, no mercado futuro de juros por aqui, pela primeira vez o Fed viu previsões de juros negativos no contrato de janeiro de 2021. Vamos ver no que isso vai dar, mas não parece que a coisa vai acalmar tão cedo, e podem ter certeza que os governadores do Fed estão completamente perdidos sobre quais serão os próximos passos, se o mercado continuar perdendo a confiança na política monetária.
Aliás, por falar em Fed e política monetária, aproveitem para ver esse gráfico do dolar do dia 01 de junho de 2020. Os 97.808 representam o menor valor desde meados de março, o que não traz boas recordações para o mercado sobre o que viria logo em seguida:
E o Fed não vem brincando em serviço, como dissemos por aqui no DocNews algumas vezes. Observem no gráfico abaixo o que foi injetado de dinheiro na economia nessas últimas 10 semanas - ou melhor, nos bancos (a ironia é proposital):
O problema é que isso fica por lá durante um bom tempo, e a velocidade com que isso está chegando na população - de fato - continua caindo consistentemente desde 1997:
E para quem acha que a política não interessa muito nessa hora de protestos nas maiores cidades americanas, observe os dados sobre a importância das regiões metropolitanas nos EUA na geração do PIB. Cerca de 50% do PIB americano (isso mesmo, METADE) depende das 25 maiores regiões metropolitanas dos EUA:
Teremos tempos difíceis pela frente. Por aqui esses protestos maiores nos grandes centros urbanos, iniciados pela notícia do crime brutal cometido por um policial contra um homem negro na última semana é emblemático. Junto com uma grande crise econômica e de saúde, somando-se a inércia de alguns governantes de combater o crime de saques que vêem ocorrendo simultaneamente aos protestos, o caldeirão começa a ferver mais forte, e podem ter certeza que o lockdown forçado e o desmprego estão ajudando tudo isso a ficar pior ainda.
Conflitos sociais são comuns em época de crise, mas hoje vemos que as coisas estão se acumulando rapidamente: pandemia e falências, violência contra a população comum, negligência do governo no combate ao crime, dívidas e desemprego, eleição com grande divisão política. Esses fatores se apresentando ao mesmo tempo, numa sociedade já fragilizada pela grande desigualdade social que foi gerada nos últimos anos, costumam gerar consequencias devastadoras para gerações futuras.
O que nos resta é ter calma, saber avaliar o que fazer nesse momento complicado do mundo, e orientar da melhor forma possível as futuras gerações sobre a importância da convivência em sociedade respeitando-se a lei e a ordem. Sem isso, nenhum pais vai pra frente.
E outro ponto importante: precisamos lutar para que as pessoas e empresas em Wall Street voltem a se conectar com o mundo real - urgentemente. O que parece acontecer hoje é que a bolsa americana vive num outro mundo, onde notícias ruins não afetam negativamente os preços e qualquer notícia razoavelmente animadora faz os preços subirem de forma irracional. Porém, o que está justificando essa subida nada mais é do que o uso do dinheiro fácil, barato e "infinito" do Fed para recomprar ações. Vejam nesse gráfico como as empresas de tecnologia estão inflando seus preços comprando suas próprias ações (buyback stocks):
A receita para eles é simples, na teoria: não temos como crescer, então vamos pegar o dinheiro empresado do Fed, por juros baixissimos, recomprar nossas próprias ações, deixar nosso acionista feliz, e aumentar artificialmente os ratios de EPS e os preços das ações. Só que tudo isso tem seu preço, a ser pago no futuro, principalmente quando a economia mostra sinais de que uma recessão virá e que não será nada fácil sair dela.
A Apple foi a campeã de buybacks nesses ultimos 10 anos. De um total de US$ 1.3 trilhões de dólares, quando se somam as grandes empresas do Dow Jones, ela foi responsável por US$ 320 bilhões em recompras:
Fonte: Wall Street Journal
E é claro que, como gastou dinheiro demais com isso, essas empresas acabaram investindo menos em coisas produtivas, como aquisição de outras empresas por exemplo. Faz tempo que a Appple não lança nada de tão inovador, como estávamos acostumados nos tempos de Steve Jobs.
O gráfico abaixo mostra a diminuição brutal de investimentos desse pessoal todo - notem os valores negativos que temos, próximos a épocas onde a bolsa sofreu quedas fortes:
Fonte: Wall Street Journal - Fed
Por enquanto a festa ainda está rolando, a música está alta, mas muita gente grande já foi embora dormir. Quem está na pista só está preocupado com a música e com a bebida, mas quando isso acabar vai ter que parar de dançar e vai ser difícil acordar sem ressaca no dia seguinte.